Discurso
del Presidente de Brasil Fernando Henrique Cardoso ante la Asamblea
Nacional de Francia (30/10/01), reunida en sesión solemne
en su honor:
"Esta é
a primeira vez que um presidente do Brasil se dirige à Assembléia
Nacional da França. Recebam, senhores deputados, a mais calorosa
saudação do governo e do povo brasileiros. Agradeço,
honrado, a oportunidade
de trazer-lhes a palavra de um país que renovou seu compromisso
com a democracia e o desenvolvimento.
O Brasil sempre
nutriu profunda admiração por esta Casa, que traz
o timbre da história da França e da humanidade. Somos
parte de um continente que conquistou a independência sob
a influência da luta memorável que se travou neste
hemisfério pela liberdade e pela justiça.
Daí se
seguiu um diálogo intenso com a França e seus intérpretes.
Sobretudo nos momentos de inflexão de nossa história.
Lembro que a
jovem monarquia brasileira se consolidou tendo como eixo o "poder
neutro" proposto por Benjamin Constant. Depois, em 1889, optamos
pela República, com lema positivista. A referência
foi Auguste Comte, assimilado segundo as circunstâncias locais.
O positivismo no Brasil foi emblema do progresso material, ainda
que sob o invólucro conservador da ordem.
A França
também serviu de modelo à criação de
importantes instituições brasileiras: o Museu de Belas
Artes, o Instituto Histórico e Geográfico, a Academia
Brasileira de Letras, a Universidade de São Paulo.
Sou egresso
da Universidade de São Paulo, onde usufruí do legado
que lá deixaram Roger Bastide, Claude Lévi-Strauss
e Fernand Braudel. Aprendi a sociologia do trabalho com George Friedmann
e Alain Touraine, a quem tanto devo intelectualmente. Nos anos sessenta,
o exílio me trouxe a Paris. Vivi de perto os dias libertários
de maio de 1968. Estive em Nanterre, onde ensinei sobre a América
Latina, mas aprendi bem mais.
Aprendi que
o anseio de Tocqueville por um equilíbrio ideal entre liberdade
e igualdade continuava a animar o espírito francês.
Lefort e Castoriadis colocavam a nu a experiência totalitária.
A democracia era confirmada como método de satisfação
individual e coletiva, para o que não faltava a contribuição
de liberais refinados como Raymond Aron, a cujas aulas havia assistido
muito antes, em 1961. Mais tarde, nos anos setenta, lecionei na
École des Hautes Études e, por generosidade de Michel
Foucault, no Collège de France.
O ambiente não
podia ser mais estimulante, inclusive pela abertura da França
aos exilados. Muitos fizeram deste país sua segunda pátria.
A norma era a tolerância, a transigência, a aceitação
do outro. Das lembranças que guardo do período, esta
talvez seja a que mais cultivo. A França, sempre identificada
com os valores universais, para mim se tornou também sinônimo
de pluralismo, ideal que me é muito caro, como a todos os
brasileiros, produto que somos da integração contínua
e duradoura de diferentes culturas.
Faço
esta reminiscência em tom pessoal, mas sei de sua importância
política. O fato de duas grandes nações, como
a França e o Brasil, partilharem valor tão essencial
como o pluralismo é digno de louvor em qualquer circunstância.
Mas isto assume relevância especial na conjuntura em que vivemos.
Na onda dos
atentados de 11 de setembro, o fanatismo dos terroristas parece
encontrar eco no desejo nefasto de acirrar ânimos entre religiões
ou culturas. Nós nos opomos tenazmente ao discurso de que
existe um choque de civilizações: de um lado, o "Ocidente"
judaico-cristão; de outro, a civilização muçulmana.
Heterogêneas como são as duas tradições,
a barbárie e o autoritarismo, infelizmente, brotaram em ambas,
mas também mereceram o repúdio dos segmentos mais
lúcidos de cada uma delas.
Recordo Albert
Camus e sua visão de que, "para fazer triunfar um princípio,
há um princípio que é preciso derrubar".
Que saibamos fazer eco ao grande escritor. Contra o medo e o irracionalismo,
façamos prosperar o diálogo e a cooperação,
valores que sabemos inscritos em todas as civilizações.
É preciso
reagir com determinação ao terrorismo, mas ao mesmo
tempo enfrentar, com igual vigor, as causas profundas e imediatas
de conflito, de instabilidade, de desigualdade. Não podemos
mais suportar a carga de sofrimento, violência e intolerância
que há muito impede que se chegue a uma solução
justa e duradoura para o conflito entre israelenses e palestinos.
Assim como apoiou
em 1948 a criação do Estado de Israel, o Brasil hoje
reclama passos concretos para a constituição de um
Estado Palestino democrático, coeso e economicamente viável.
O direito à autodeterminação do povo palestino
e o respeito à existência de Israel como Estado soberano,
livre e seguro são essenciais para que o Oriente Médio
possa reconstruir seu futuro em paz.
Países
como a França e o Brasil estão mais do que credenciados
e assumirem um papel ativo na modulação de uma ordem
mais imune ao dogmatismo e à exclusão. Por história
e formação, somos fadados ao universalismo. Se existe
uma afinidade clara entre o Quai D'Orsay e o Itamaraty, é
exatamente a convicção de que o respeito à
diversidade é condição sem a qual não
se realiza o diálogo.
Este é
o método de nossa ação externa, uma ação
que se distingue pela variedade de interlocutores. Na França
e no Brasil, a votação universalista tem sido explorada
a partir da integração com os vizinhos. O Mercosul
é tão importante para o Brasil quanto a União
Européia o é para a França.
Jean Monnet
se dizia satisfeito em perceber que a integração européia
não se amparava na letra de tratados, mas na mente das pessoas.
Diria o mesmo do Mercosul, que deixou de ser projeto de governos
para se transformar em projeto de sociedades. Acima dos obstáculos
ocasionais, que são comuns sempre que se busca a integração
de vontades soberanas, está a determinação
de avançar uma experiência de grande importância
para a região e seu intercâmbio com o mundo.
Acredito na
associação entre o Mercosul e a União Européia,
que pode vir a ser um dos padrões de convivência que
esperamos prevaleçam após a crise. Em quaisquer circunstâncias,
o Brasil buscará associar-se à União Européia
e conta com o apoio da França. Cumpre estar atento ao princípio
da equidade. Aos ganhos de um lado deve corresponder o atendimento
às expectativas do outro.
O interesse
básico do Mercosul é de maior acesso ao mercado agrícola
comum e de poder competir em igualdade de condições
em terceiros mercados. A proposta do Mercosul acaba de ser apresentada.
Acredito ser uma boa proposta. Mas estou convencido de que podemos
fazer mais, e convido os empresários e os negociadores dos
dois lados a fazerem um esforço adicional para incluir um
universo mais amplo de produtos.
Com efeito,
devemos dar um sinal claro de que estamos dispostos a avançar
rápido na construção de um acordo de livre
comércio. Se acreditamos de fato no livre comércio,
cabe ao Mercosul e à União Européia a adoção
de medidas efetivas contra o protecionismo. Entretanto, o preço
desta mudança não deveria ser pago apenas pela França,
uma vez que outros países mais poderosos continuam a subsidiar
fortemente seus produtos agrícolas.
A convergência
de nossos blocos contribuirá para que a próxima rodada
da Organização Mundial do Comércio satisfaça
aos anseios de todos, de forma equitativa. A ameaça de um
novo ciclo recessivo é demasiado presente para que se desperdice
a oportunidade de relançar em Doha as negociações
comerciais multilaterais.
É também
hora de controlar a instabilidade dos fluxos financeiros. Se o mercado
é o instrumento mais eficiente para a geração
de riqueza, é preciso impor limites a suas distorções
e abusos. Ousemos, se necessário, tributar o movimento dos
capitais para assegurar liquidez às economias emergentes
e recursos para combater a pobreza, a fome e as doenças nos
países mais carentes.
Dizia Montesquieu
que o comércio tem a virtude de civilizar os costumes políticos,
inibindo a discórdia, favorecendo a moderação.
Falava do "doce comércio". Oxalá a economia
do futuro proporcione esse importante ganho adicional. Não
nos esqueçamos, de todo modo, que o fortalecimento da democracia
constitui um fim em si mesmo, inclusive no plano das relações
entre os Estados. Ordem alguma se revelará legítima
sem o concurso daqueles a que se destina. Para não falar
de sua eficácia, que será sempre função
do consentimento das partes.
Assim se justifica
o pleito pela democratização dos mecanismos decisórios
de poder, o que inclui o Conselho de Segurança das Nações
Unidas, que deve ser ampliado e reformado para melhor refletir a
realidade em que hoje vivemos. As instituições da
governança internacional foram concebidas para reger o mundo
da Guerra Fria. É chegado o momento de atualizar essas instituições
às circunstâncias do século 21.
Neste começo
de século, enfrentamos de novo a oposição entre
barbárie e civilização. A barbárie não
é somente a covardia do terrorismo, mas também a intolerância
ou a imposição de políticas unilaterais em
escala planetária.
Não devemos
permitir que a lógica do medo substitua a lógica da
liberdade, da participação, da racionalidade. A nova
ordem não pode prescindir tampouco do reforço da proteção
dos direitos humanos. Ela tampouco pode prescindir da proteção
do meio ambiente. Daí nosso apoio vigoroso ao Protocolo de
Kyoto.
O Brasil está
concluindo os procedimentos necessários à ratificação
do estatuto do Tribunal Penal Internacional. São instrumentos
como o TPI que revigoram nossa confiança na cooperação
entre os Estados. E até nos fazem acreditar na possibilidade
de um novo contrato internacional.
Um contrato
que atenda à segurança dos Estados e também
promova o desenvolvimento sustentável, a democracia e os
direitos humanos. Um contrato que atualize a utopia da fraternidade
entre os povos, que tanto mobilizou esta Assembléia em seus
primeiros dias. Um contrato que dissemine uma nova ética.
Se é
certo que a globalização aproxima mercados e sistemas
produtivos, não é menos certo que a paz no mundo depende
da difusão de uma ética da solidariedade. O Brasil
já demonstrou sua solidariedade ao reduzir, quase anulando,
as dívidas de vários países pobres tanto da
África quanto da América Latina. Se o Brasil já
pôde fazê-lo, por que outros países mais desenvolvidos
não poderiam fazer o mesmo? Esta solidariedade não
dispensa a ação dos Estados. Antes a exige.
Sabemos que
o interesse geral pode reclamar restrições à
soberania estatal, mas a soberania popular não prospera sem
presença ainda maior dos Estados nacionais. O pluralismo
cultural também requer que as sociedades organizadas em Estados
ativos e radicalmente democráticos, que respeitem o sentimento
e autonomia dos povos. Por salutar que seja a intervenção
direta de novos atores no debate internacional, as possibilidades
reais de mudanças passam pela mediação dos
Estados.
O contrato que
antevejo se dá, portanto, entre Estados. Mas Estados que
não sufoquem as nações, senão que sejam
delas súditos. Isto se impõe sobretudo nos momentos
de crise, que podem ser fecundos. O paradoxo das situações
de crises é exatamente o de criar ambiente propício
à revisão de paradigmas. Expandem-se as fronteiras
do possível. Lutemos por uma nova ordem mundial que reflita
um contrato entre nações realmente livres, e não
apenas o predomínio de uns Estados sobre outros, de uns mercados
sobre outros.
Mas isto exige
ousadia. Em idéias e atos. Esta é a tradição
da França e, na medida de suas possibilidades, também
a do Brasil. É mais do que oportuno que saibamos intensificar
ainda mais nosso diálogo, um diálogo de séculos,
pleno de realizações, mas também de promessas
não concretizadas. Que o nosso diálogo neste início
de século se nutra de esperanças, mas nos leve à
construção de um caminho comum e venturoso, é
o meu desejo. Agradeço, uma vez mais, em nome de meu país,
a gentileza do convite para ocupar esta nobre tribuna. Muito obrigado."
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